#clube 17: Cleópatra e a representação de mundo possível
A santa, a pecadora e a revolucionária: a vivência queer e a potência de existir para além das margens
Chegou a hora de falarmos sobre a experiência total com Nossa Senhora do Barraco. Afinal, é um bom livro?
No texto passado, assim como nas discussões em grupo, percebi um consenso: trata-se de uma obra confusa e apressada. Especificamente sobre isso, tratei detalhadamente na newsletter anterior — não deixem de ler.
No entanto, acredito que essa pressa confusa pode ser vencida. Não que a autora desejasse que tratássemos o livro como um obstáculo a ser superado, mas, ao finalizá-lo, tive a sensação de que havia um desejo oculto de transposição de olhares. Explico: ela inicia a narrativa abordando os estereótipos (não sem razão, é claro) da vida marginalizada nas favelas, especialmente a de uma travesti que, espancada na infância e renegada pelo amor, precisou se prostituir para não morrer de fome. Esse desejo oculto surge no momento em que o milagre acontece — quando a protagonista afirma ter visto a Virgem Maria e a comunidade passa a se organizar melhor. Nosso olhar, então, se desloca do ponto comum e passa a enxergar algo estranho, distinto, que inevitavelmente causa confusão e estranhamento.
Cleópatra, nossa protagonista, encarna uma multiplicidade de papéis: travesti, santa, prostituta, líder comunitária e amante. Sua identidade não segue uma linha fixa, mas flutua entre categorias, evidenciando um caráter queer que se recusa a ser essencializado. Essa fluidez se reflete na linguagem da obra, que mistura gírias, discursos religiosos e referências à alta cultura. O resultado é um experimento do neobarroso1 latino-americano, que potencializa a fragmentação identitária.
O termo “neobarroso”, desenvolvido pelo argentino Néstor Perlongher, emerge na obra de Cabezón Cámara como um estilo que absorve e desestabiliza discursos normativos.
Em Nossa Senhora do Barraco, essa estética se manifesta na justaposição de registros linguísticos contrastantes: o popular e o erudito, o sacro e o profano, o poético e o vulgar. A linguagem da protagonista se constrói nesse hibridismo, atravessada pelo lirismo das canções populares, pelo fervor religioso e pela marginalidade da favela. Essa acumulação excessiva de signos e referências não apenas confere dinamismo à narrativa, mas também desmonta hierarquias culturais tradicionais.
A apropriação de elementos do catolicismo é um dos aspectos centrais desse neobarroso subversivo. A personagem principal não apenas se autodenomina médium da Virgem Maria, mas ressignifica a iconografia sacra, transformando-se em uma espécie de santa popular transgressora. O sincretismo religioso que permeia a obra, com procissões improvisadas e santos esculpidos de maneira grotesca, reforça essa estetização do excesso. Aqui, a espiritualidade se torna tanto um instrumento de poder quanto uma forma de resistência.
O fluxo da história alterna entre presente e passado, entre o testemunho de Qüity e a voz direta de Cleópatra, criando uma estrutura fragmentada e labiríntica. Essa descontinuidade narrativa reflete a identidade fluida da protagonista, cuja trajetória não segue um percurso linear de transformação, mas um movimento errático e imprevisível.
Com essa construção, Cabezón Cámara insere Nossa Senhora do Barraco em uma tradição de resistência literária que desafia a ordem dominante. Temos, em mãos, um livro que usa a cultura clássica para subverter a clareza clássica, que abraça a complexidade e a contradição e que oferece um modelo de subjetividade que se recusa a ser fixado em categorias rígidas. A protagonista, com sua multiplicidade de papéis e sua linguagem exuberante, personifica esse princípio, tornando-se um símbolo da potência subversiva da literatura queer latino-americana.
A destruição de El Poso não foi apenas física, mas carregada de simbolismo: o que foi construído à margem do sistema é violentamente erradicado por ele. Diante dessa perda, Cleópatra segue seu processo de reinvenção identitária. O fato de se assumir lésbica apenas reforça a ideia de que o existir é um constante movimento, desafiando categorizações fixas.
Ler a história de Cleópatra, contada por ela mesma, é devolver-lhe o protagonismo que lhe foi negado por toda a vida. No fim, temos diante de nós uma narrativa que ergue um símbolo de um mundo possível — ainda que frágil — onde gênero, sexualidade e pertencimento podem ser reinventados sem as amarras das convenções sociais.
Considere apoiar financeiramente o trabalho que realizo no Nossa Literatura. Nossa newsletter é gratuita, mas você pode assinar por um pequeno valor mensal e apoiar o trabalho independente de divulgação de literatura latino-americana que realizo há mais de sete anos.
Gil, J. M. (2018). El devenir queer de Cleopatra en La Virgen Cabeza de Gabriela Cabezón Cámara. Clepsydra. Revista Internacional de Estudios de Género y Teoría Feminista, (17), 11-26.
Olá Eliz, gostei muito da sua análise e esse foi livro demorou para me "pegar". Mas, o esforço da leitura valeu a pena e foi interessante conhecer essa obra. Todavia, o ponto que eu mais gostei foi o "Epílogo". Essa parte foi muito interessante na minha leitura.