clube #12 - Cem anos de solidão é o triunfo da imaginação libertadora
O livro de novembro do Clube Nossa Literatura e Memorial da América Latina é daqueles inesquecíveis que devem ser relidos.
Quando li Cem anos de solidão (1967) pela primeira vez, quase dez anos atrás, eu fiquei profundamente impressionada com as descrições aparentemente ilimitadas de detalhes, sensações, espaços, pessoas, objetos…
Testemunhamos o descobrimento de Macondo e acompanhamos seis gerações do início ao fim. Esse descobrimento se dá no exato instante em que o romance é narrado, as coisas são fundadas com o Verbo. Não há um antes, há apenas o que Gabo nos entrega e vai criando a cada palavra, os fatos e as palavras surgem simultaneamente. Se Cem anos de solidão parece infinitamente descritivo, é porque estamos diante da possibilidade prolixa do real se firmando a partir da ficção.
É basicamente perceber que o narrador onisciente, que tudo sabe e tudo entrega, só faz o que mais gosta de fazer: olhar e narrar. Ele é absolutamente impertubável. E não para enquanto não atinge seu propósito máximo, que é narrar e criar metáforas.
“É evidente que Cem anos é uma invenção sincrética que supõe a existência de um bom número de gêneros literários prévios - a poesia épica, As mil e uma noites, os livros de cavalaria, a crônica do explorador ou descobridor, o conto oral ou popular, o conto culto ou a novela, os costumes do século XIX, o romance dos séculos XIX e XX, inclusive o romance de aventuras, a poesia simbolista ou pós-simbolista -, assim como de antigos mitos bíblicos e grecolatinos. Esse vasto conhecimento implícito é o que sustenta e impulsiona a superação de todas as convenções”.1
O romance atualiza o viver. E Cem anos de solidão nos deixa diante de uma obra “dúbia”: por vezes parece um conto (muito extenso) e, em outras, um romance. E Gabo, como se sabe, é um grande escritor, ele conseguiu criar ilusões - não falsas - de tudo aquilo que está acontecendo no momento preciso em que estamos lendo.
Muitos críticos e pesquisadores já fizeram alusão à forma de construção de Cem anos, assim como em Pedro Páramo - outro romance que inspirou e influenciou diretamente na escrita de Gabo - há sempre certa referencialidade ao modo horizontal de narrar. Sabemos que o romance é uma ampliação (ou complementação) de si mesmo e, aqui, é possível observar claramente uma construção narrativa que se extende horizontalmente e se desenvolve no tempo, a partir de distintas fases (linhagem e personagens). Um capítulo complementa perfeitamente o outro, parece tão perfeito e, por vezes, parecem reflexos que se repetem eternamente. Uma condenação cíclica que não absorve ninguém.
“O feliz leitor, seduzido de mil maneiras diferentes, convidado a uma verdadeira festa de leitura, não sai de seu assombro. Um espaço imaginado, modelado e descrito as mil e uma maravilhas o tem perplexo e constantemente admirado, ao longo de um processo de leitura tão imprevisível, tão aberto ao insólito, como o renovado mundo maravilhoso que vai descobrindo. É isso o que o povo de Macondo sente.” idem (1)
“Não há livro digno de ser lido se não for digno de ser lido várias vezes”, afirma Susan Sontag, fazendo referência aos romances de Garcia Márquez e Juan Rulfo, dois latino-americanos, que, para contar a trajetória de um povo cuja história é tão marcada pela realidade brutal, recorreram ao deslumbramento do mágico para alcançar a complexidade latino-americana.
Sabemos que é contando a história dos Buendía em Macondo – a terra que não foi a eles prometida e abriga seu êxodo – que Gabo desperta a possibilidade de olhar para a realidade latino-americana de uma maneira não convencional.
A história é narrada num tempo ininterrupto, insere personagens com nomes repetidos, antecipa fatos em passagens aparentemente despretensiosas, mas que logo serão esmiuçadas e tão bem colocadas, que não é rara a necessidade de voltar para a árvore genealógica dos Buendía ou para recapitular algum trecho. Essa sucessividade nos insere num tempo cíclico, que parece não passar, mas girar e girar, como a própria matriarca Úrsula afirma em diversas epifanias que tem sobre toda a sua família.
Aplicando uma força inversamente proporcional, vemos fatos cotidianos virarem mágicos, como crianças voando em tapetes, padre flutuando ao tomar chocolate ou uma jovem cansada da banalidade do mundo simplesmente subir aos céus. A jovem é Remédios, a bela, uma das tantas mulheres representadas no livro com suas solidões, complexidades e força, características tão marcantes que se tornam inesquecíveis para quem atravessa a história de Macondo.
Quando Vargas Llosa fala que Cem anos é um romance total, é definindo o caráter absolutamente insólito de Macondo e tudo o que toca essa criação. O romance trava uma batalha descomunal contra as convenções do nosso tempo e de nossa sociedade, libertando todos nós. “Cem anos narra um mundo em duas duas dimensões: a vertical (o tempo de sua história) e a horizontal (os planos da realidade).”2
“Na vida, o costume nos sujeita ao ambiente cotidiano, nos impedindo de ver, perceber, sentir os objetos e seres que nos rodeiam. As formas literárias conseguem a desfamiliarização (ostranenie) do pouco ou não percebido, fazendo possível a visão dos objetos recuperados, o desobrimento consciente das condutas e dos sentidos.” idem (1)
A leitura de Cem anos de solidão provoca inquietação, transmitida a nós leitores por ser comum a todos os personagens – seja por homens, que promovem guerras perdidas, ou por mulheres fortes e corajosas, que fazem a vida prosseguir e a cidade prosperar. Perceber que a tragédia dos Buendía faz sentido justamente por nenhum dos lados ter total razão, é confirmar que não há redenção.
GUILLÉN, Claudio. Algunas literariedades de Cien años de soledad. 2007.
LLOSA, Mario Vargas. Cien años de soledad. Realidad total, novela total. 2007.
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