Lembro de uma entrevista do Vargas Llosa que, ao ser perguntado sobre o ato de abandonar livros por não estar gostando, ele responde categoricamente - e sem preâmbulos - que simplesmente larga e parte para o próximo. Desde então, senti que alguma química do meu cérebro foi transformada porque me tornei a leitora que simplesmente abandona livros que não gosta.
O ponto é que alguns livros precisam ser lidos até o fim. O evangelho do novo mundo (2021), da escritora guadalupense Maryse Condé, foi um desses. No meu caso, porque foi o livro do mês de outubro do clube e eu tive que ler para conversar sobre e porque, no fundo, fiquei curiosa para ver até onde iria essa história.
Me desculpe, Condé, quem sou eu na fila do pão para falar algo, né? Apenas uma leitora. Você foi uma de nossas grandes escritoras e merece todo o reconhecimento, mas esse livro, infelizmente, não é nada legal.
A história, como o próprio título sugere, traz uma roupagem nova nem tão nova assim sobre o messianismo, tão marcante na literatura caribenha principalmente no século XX. Condé explicita, logo na dedicatória do livro, que a história é uma homenagem a Saramago e ao seu O Evangelho segundo Jesus Cristo. Tanto o livro de Condé, quanto outros que seguem a mesma linha, trazem uma figura masculina que nasce ou chega repentinamente numa ilha ‘isolada’, realiza transformações sociais, prega sua palavra e desaparece. Na maioria das vezes, esse novo Messias chega porque a humanidade está mergulhada no pecado e precisa de salvação. No caso do Messias de Maryse Condé, o Pascal, ele busca sua família biológica, sua identidade e tenta construir um mundo com amor e harmonia.
Frases como “somente o amor é capaz de transfigurar o mundo e transformá-lo em um lugar harmonioso” recheiam o livro e dão aquele toque cafona que, pelo visto, a gente parece merecer.
As idas e vindas de Pascal segue um padrão da literatura afro caribenha que destacam características indispensáveis: a viagem e o espaço social pós-colonial.
Pascal é um protagonista messiânico e hedonista. Nasceu em uma ilha fictícia do Caribe francófono no final do século XX. Ele se envolve em várias lutas sociais em sua ilha natal e empreende longas viagens sempre em busca de seu pai misterioso, de sua identidade pessoal e de um mundo melhor onde o mal será erradicado do coração do homem1.
É claro que há a importância da viagem associada com a missão salvadora de Pascal, nesse espaço lemos uma história que tenta usar o elemento messiânico para ofertar profundidade e complexidade aos personagens. O que me intriga é que esse artifício sempre se choca com o caráter ingênuo e duvidoso de Pascal que, para funcionar, é quase sempre colocado em tom paródico.
Mesmo sendo uma tentativa de reescrever o Evangelho para a América, Condé segue a mesma linha dos acontecimentos canônicos da vida de Jesus Cristo encarnado por Pascal: nascimento atípico com paternidade conturbada com direito a manjedoura e animais, as bodas de Caná, a cura de Lázaro, o relacionamento com Maria Madalena, é claro, a Última Ceia, a traição de Judas, e sua lamentável morte prematura.
“O personagem de Condé é batizado de "Pascal" por sua mãe adotiva. Este nome alude não apenas ao seu dia de nascimento ("Domingo de Páscoa"), mas também ao filósofo cristão do século XVII Blaise Pascal e sua antropologia pessimista. De fato, Blaise Pascal insiste em Pensées (1669) sobre a natureza fundamentalmente má e o tédio existencial do homem, que constituem a força motriz de toda ação humana. Dando ao seu protagonista o nome de Pascal, a autora aponta o caráter perdido e agitado de seu personagem messiânico, lançando dúvidas desde o início sobre sua qualidade de salvador desinteressado e eficaz”2.
É certo que a figura de Pascal, com sua subjetividade e viagens, evidencia a posição crítica da autora sobre a exploração e opressão colonial e, principalmente, sobre a representação da figura divina como sempre misericordiosa e benevolente. A redescoberta das Américas por Pascal reforça uma posição positiva sobre o futuro, em que é possível alcançar, ou pelo menos tentar, uma sociedade igualitária e menos cruel. Mas isso é utópico demais e sempre bate de frente com a ingenuidade do protagonista. E mesmo que exista uma representatividade da ‘ilha’ (como local geográfico e subjetivo) para expor a precariedade cultural, social e econômica engendrada pelo colonialismo, há, por outro lado, “o espaço vivido-imaginado produzido pelo Evangelho que também é enriquecido por uma série de intertextos, às vezes clássicos, às vezes extraídos de notícias franco-caribenhas e francesas, e eventos maravilhosos que dão ao texto seu caráter irônico ou mesmo excêntrico” (idem).
Para mim, o grande problema é como tudo isso foi construído. Na teoria, os ideais são interessantes, os temas e as personagens também poderiam ser. Na prática, temos um livro chato e superficial. Senti preguiça durante toda a história.
Além disso, reitero que escolhi o livro porque sempre desejei ler Condé em grupo, conversar sobre sua literatura, estilo e temas. Apesar de O Evangelho do novo mundo conter tudo o que sempre foi indispensável para a autora, não vi um propósito definido e, muito menos, uma forma satisfatória. Além disso, o livro é caracterizado como realista mágico e, para mim, não passa de uma informação equivocada para gerar interesse e vendas em cima da história. Não há, pelo do que já lemos e debatemos, nada substancial que outorgue essa característica ao romance. Uma pena.
CONDÉ, Maryse. L'évangile du nouveau monde. Buchet-Chastel, 2021.
Idem.
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Vc já leu "Eu, Tituba"? Li uns três de Condé, e considero-o o melhor