O rancor pode ensinar?
Após 11 anos vivendo em Paris, Alejo Carpentier voltou para Cuba com a cabeça na América e o coração um tanto quanto preenchido de desgosto.
Para quem já iniciou a leitura de O reino deste mundo, primeiro livro do Clube Nossa Literatura e Memorial da América Latina, provavelmente já leu o texto do Prólogo. Escrito inteiramente com um tom de escárnio ao Velho Mundo e uma visão romantizada da América - o Novo Mundo -, Carpentier desdenha das práticas surrealistas de criação a partir de truques.
Ele abre o texto exaltando a beleza do Haiti, país que visitou em 1943, falando da sorte de visitar lugar tão maravilhoso e insólito. Sem prolongar tanto os deslumbramentos, já parte para uma série de frases sarcásticas, colocando em contraposição o que viu e vivenciou no Haiti em comparação com Paris/Europa. “Fui levado a aproximar a maravilhosa realidade vivida à extenuante pretensão de suscitar o maravilhoso que caracterizou certas literaturas europeias destes últimos anos”. E prossegue com essa “o maravilhoso, buscado por meio dos velhos clichês da selva Brocelianda, dos cavaleiros da Távola Redonda, do mago Merlin e do ciclo de Arthur. […] Não se cansarão os jovens poetas franceses das aberrações e dos palhaços da fête faraine, dos quais Rimbaud já se despedira em sua alquimia do verbo?”
Isso tudo literalmente na primeira página, o homem não estava com muita paciência para enrolar, queria soltar o verbo e criticar os surrealistas a todo custo.
O irônico é poder avançar uns anos após esse texto e perceber como a postura dele mudou, ao invés de rechaçar os surrealistas, ele começa a agradecer e reafirmar a importância do seu período na França para que ele finalmente começasse a enxergar a América. Esse assunto possui vários desdobramentos, papo para outra newsletter que quero enviar.
No final das contas, Carpentier não gostava tanto da burocratização que esses artifícios traziam para a criação artística. “à força de querer suscitar o maravilhoso a todo transe, os taumaturgos se tornam burocratas”. Daí, surge com esse conceito bonito - e um tanto quanto sonhador - pra gente:
“o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de “estado limite”. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé.”
Exemplificando para cristalizar os pensamentos, ele diz que os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos, nem os que não são Quixotes podem se meter, em corpo, alma e bens, no mundo de Amadís de Gaula ou Tirante, o Branco. E, como se todo o desgosto já não tivesse sido pronunciado, ele volta ao formato de contraposição. “É por isso que o maravilhoso invocado na descrença - como o fizeram os surrealistas durante tantos anos - nunca foi senão uma artimanha literária, tão aborrecida, ao prolongar-se, quanto certa literatura onírica “arranjada”, certos elogios da loucura, aos quais estamos demasiadamente de volta”.
Observem que tudo começa a partir de sua viagem feita ao Haiti em 1943. As viagens ocuparam papel importante na vida de Carpentier, ele sempre voltava "transformado". Essa viagem de 1943 foi sempre relembrada por ele em entrevistas e outros ensaios que escreveu porque foi emblemática: a partir dela ele conseguiu teorizar a estética do real maravilhoso. Desde 1947, várias e várias linhas teóricas foram se firmando nos estudos literários latino-americanos para conceituar o tal do real maravilhoso. Muitas vezes colocado em contrapartida com o realismo mágico - Carpentier até já disse em entrevista que o mágico é o insólito, mas inventado pelo homem, tirado de sua imaginação -, o maravilhoso levou anos para se elevar ao posto de estética da literatura latino-americana.
Observem que ele recheia o texto do Prólogo com dados históricos e referências, para nos deixar a sensação que tudo o que está ali escrito nas páginas seguintes veio a partir de documentos verdadeiros. Ele queria firmar essa seriedade, essa verdade, esse distanciamento da “trapaça” que os surrealistas praticavam. Tipo como se dissesse: “olhem só, mesmo com uma história factível, verdadeira, histórica eu consigo tirar camadas e mais camadas insólitas e maravilhosas”.
A parte boa, sempre há, é que o rancor que sentiu serviu para impulsionar seus estudos em torno da América Latina. E, após anos de experiência, passou a entender - ou melhor, reconhecer - a importância formativa intelectual que sua vivência na Europa lhe trouxe. Mas, por enquanto, fiquemos com o texto do Prólogo e todo o seu sarcasmo comparativo e irônico. É divertido, vai…
“Tudo se torna maravilhoso numa história impossível de situar na Europa e que, no entanto, é tão real como qualquer sucesso exemplar dos consignados, para edificação pedagógica, nos manuais escolares. Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?”
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