clube #9 - é mágico quando homens da Guatemala se tornam símbolos
A vida invade as páginas de Homens de milho no momento em que Astúrias personaliza e preenche de subjetividade homens anônimos da Guatemala.
Agora que finalizei os 15 primeiros capítulos de Homens de milho posso afirmar que o pior já passou. Não me entendam mal, quando falo pior quero dizer a respeito da resistência inicial que ele causa. Agora, me sinto entregue e totalmente envolvida. Já consigo pegar o ritmo do texto de Astúrias, já sou capaz de ouvir cantigas, lendas e mitos sendo narrados enquanto a vida de homens e mulheres - antes anônimos - supera o signo e se torna símbolo. A história nunca antes contada finalmente chegou até nós. E que alegria!
De acordo com o pesquisador Guerrero Cárdenas (2014), há fidelidade na obra de Astúrias, por isso há uma comunicação maior e verdadeira com o leitor. Astúrias é mestiço, de raizes indígenas, “isso significa que ele conhece a língua, que é como sua língua materna, elemento que lhe permite dominar o contexto da língua, o sentido dessa língua materna e, talvez, devido ao seu caráter bilíngue, consegue produzir (ou reproduzir) com a fidelidade necessária, o que neste caso é importante. Por isso, as palavras de Astúrias estão sendo transmitidas, porque ele é um falante natural da língua, das nuances e com elas as cosmogonias, as mitologias, todos aqueles elementos vitais que numa língua fazem com que tenha maior segurança de ser, digamos, de transmitir o entendimento” (Link da fonte do artigo está no final desse texto).
Lemos, até agora, cinco partes desse livro que mais parece um estudo do ser humano, uma antropologia da língua. Vejo esse trajeto como uma espécie de elástico. Inicialmente, bem apertado impossibilitando a compreensão de nuances, detalhes. Depois de um tempo, conforme avançamos, o elástico vai afrouxando, esticando e conseguimos perceber toda a teia do fio narrativo.
A primeira parte, Gaspar Ilóm, compreende dois capítulos que narram a Guerra do fogo e do milho. Conhecemos os milheiros - aqueles que exploram o milho -, e os homens de milho - aqueles que vivem do/para o milho -. Desde esse primeiro momento, Astúrias apresenta um estilo de construção narrativa e de sentido no qual começa com um fato, repete e acrescenta outro, repete e acrescenta outro… “a terra de Ilóm cheirava a tronco de árvore recém-cortada a machadadas, a cinza de árvore recém-queimada para a roça”; “o ar de Ilóm cheirava a tronco de árvore recém-cortada a machadadas, a cinza de árvore recém-queimada para a roça”, entoa e repete Astúrias na página 17. O ritmo se dá pelo constante tom de chamamento para a guerra, quase apocalíptico e tudo se encerra com o mergulho de Gaspar Ilóm no rio, sendo corroído pelo veneno que lhe deram.
A segunda parte, conta a partida e desaparecimento de Macholhão, o filho de Tomás e Vaca Manuela - os dois que envenenaram Gaspar Ilóm e seus homens, a mando do coronel Chalo Godoy. O rapaz desaparece e Tomás tem premonições nada animadoras sobre isso. Para se aproveitar do desespero do pai, os milheiros criam uma história que Macholhão aparece entre as árvores quando pegam fogo. Tomás passa a incendiar todas as suas terras em busca do filho. O final do capítulo é coroado pela vingança de Tomás vinda do arrependimento por ter envenenado Gaspar Ilóm. Ele queima toda a plantação de milho de suas terras e deixa todos sem nada.
O veado das sete queimas é a terceira parte do livro. O mais complexo em minha experiência. Aqui, o pressuposto da fé (matéria fundamental para o maravilhoso emergir) é o que delimita toda a nossa fruição. Nana, a matriarca de numerosa família Tecún, está com soluço mortal que dizem ter sido colocado pelos Zacatón. A solução dada pelo veado das sete queimas, o curandeiro, é que toda a família Zacatón seja decapitada. E assim é feito.
Um dos Zacatón, a pequena Maria Tecún, que nomeia a quinta parte do livro, é resgatada por um cego antes de morrer. E foge anos depois com filhos e uma vontade enorme de viver finalmente.
Temos um respiro entre eles. Astúrias dedica a quarta parte para o coronel Chalo Godoy. Esse capítulo nos cai como uma explicação necessária com outros pontos de vista de uma mesma história.
“Candelária Reinosa cerrou os olhos e sonhou ou viu descer do alto do cerro ardendo em brasa o Macholhão montado em seu macho montês…” A escolha de colocar os verbos “viu” e “sonhou” como equivalentes não é por acaso. A proposta de real maravilhoso e realismo de Astúrias surge no período entre guerras. Se a guerra demonstra que a racionalidade e toda a inovação tecnológica do homem serve apenas para a sua destruição, o surrealismo propõe justamente a visão crítica pelo caminho inverso: o irracional. E o que há de mais irracional que os sonhos? É a partir desse irracional sonhado que escreve Astúrias, a realidade Maia Quiché de mitos, lendas e cosmogonias que perduram até hoje na história guatemalteca e americana.
“Ninguém antes dele havia escrito sobre a Guatemala, sobre sua realidade e seu entorno, ninguém havia se preocupado com essa realidade. Essa imensa realidade da Guatemala, essa visão do Índio, essas formas, esses costumes, essa maneira de viver; a flora, a fauna, onde do ponto de vista dos surrealistas é algo mágico, pelos contrastes, pelas cores, pelos próprios costumes, pela própria linguagem, pelos ritos, porque vejamos da seguinte maneira: ele está inserido em uma plêiade de artistas que estão tentando romper com o racional, que é o mundo europeu, e então se voltam para o mundo americano.” [Guerrero Cárdenas, 2014]
Há uma concordância que toda a obra de Astúrias é uma proposta estética e ideológica. Ele considerava que a realidade guatemalteca poderia ser contada ou narrada como se fosse um grande sonho. Se o mágico é o cotidiano, então é isso que será contado. Por isso, o maior recurso dele é a linguagem.
“Na vida o que assusta não vale muito”, diz a certa altura. Por aqui, seguimos nos deslumbrando e assustando com essa linguagem que iguala sonhos e realidade.
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Artigo: historico.upel.edu.ve:81/revistas/index.php/dialectica/article/view/5160
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Eliz, não tô relendo, mas o texto me transportou novamente para as páginas do livro. Obrigada por compartilhar e ser instrumento de conhecimento. Essa parte mais técnica fica mais fácil quando você expõe de forma clara e sucinta o significado e o intuito da escrita do autor.