clube #7: ganhamos, mas agora temos que defender o triunfo
A casa dos espíritos surge no fim do horizonte, como uma voz soando ao longe, anunciando que tudo é incerto, controverso, por isso, não devemos empunhar certezas.
Finalizar a releitura de A casa dos espíritos me faz confirmar uma impressão: o desejo irremediável do realismo mágico pelas narrativas cíclicas.
A última frase do livro é a que abre toda a história. Narrada quase que inteiramente por uma mulher, Alba, que conhecemos a certa altura do livro, temos algumas interrupções de voz masculina com os trechos do Esteban Trueba.
Considero os últimos cinco capítulos do livro os mais fascinantes. Isso porque, para mim, todo o resto que envolve a tentativa de suscitar um clima onírico e fantasmagórico no livro não passa disso: uma tentativa. Soa falso, como uma saída encontrada para tentar equilibrar uma ‘nova’ perspectiva para retratar a situação política do Chile a partir da visão feminina.
No texto anterior dessa newsletter, comentei sobre o fato do realismo mágico, às vezes, ser citado junto com o termo feminismo mágico. Como se o realismo mágico já não fosse problemático por si só, querem inventar termos que mais excluem que acrescentam algo. Citei uma fala da Allende, afirmando que não ‘encaixa’ a narrativa dela nesse aspecto de feminista mágico. É realista, feminista, mágico.
Não é de hoje que sabemos que muito do pensamento feminista modernista silenciou vozes de vários grupos diferentes de mulheres, a questão de classe e raça atravessa o gênero e, como resultado, temos as opiniões das mulheres brancas de classe média na América do Norte e na Europa se sobressaindo. Trazendo para o nosso livro, temos as mulheres da família del Valle que, por conta da posição sociocultural que ocupam, seguem as diretrizes da cultura europeia ou norte-americana. É claro que o feminismo que elas se inserem tem valor, pois almeja a mudança social, mas, se refletirmos bem, percebemos que muito dos objetivos nem são prioridades na sociedade em que vivem.
Por que Clara se casa com Esteban se ela viu que, assim, seu futuro não seria feliz? Sacrifício. Esse chamado incontrolável que as mulheres parecem ser obrigadas a responder sempre sem questionar ou criticar. Se entregar em sacrifício é uma ação comumente atribuída como parte intrínseca da natureza feminina. E que, vejam só, Clara responde inexplicavelmente sem hesitar.
Comentamos em grupo sobre a questão do título: onde estão os espíritos? Pareceu propaganda enganosa. Como disse antes, considero toda a parte fantasmagórica e espiritual um grande artifício, não consegui comprar essa ideia. Se olharmos por outro lado, o título poderia fazer sentido se pensarmos que as principais protagonistas femininas do romance são caracterizadas pela aura angelical e por sua dependência de uma figura masculina. Essa falta de independência, as transforma em sombras de algum personagem masculino. Essa impressão permite que elas sejam consideradas espíritos idealizados, fantasmas, desprovidos de materialidade corpórea devido ao seu estado subordinado, à sua alteridade intrínseca.
“No local de trabalho, na privacidade - ou não privacidade - de sua casa, nas arenas públicas e políticas, nas editoras, a mulher latino-americana ainda é em grande parte uma construção sombria. A existência independente das mulheres, embora real, ainda é percebida como uma ficção, como um derivado imaginário e incompleto da autoduplicação - o derivado da costela de Adão, o castrado freudiano, a anima junguiana - de um quadro ideológico predominantemente masculino. Assumir o contrário, permitir a independência ou auto posse de uma mulher, exigiria o recálculo completo de todo um sistema econômico e filosófico”. [em: Debra A. Castillo, Talking Back. Toward a Latin American Feminist Literary Criticism]
Positivamente, percebemos que a escolha de Allende em escrever um romance polifônico - de vozes femininas em sua maioria -, movimenta engrenagens que podem ser utilizadas para desestabilizar um esquema dito falocêntrico. Porém, volto ao aspecto que me faz balançar nessa interpretação: os silêncios. Clara escolhe não falar com Esteban após ser espancada por ele. Parece uma atitude pertinente se não olhássemos para a origem e o destino desse silêncio. Historicamente, mulheres foram silenciadas, o fato de Clara se calar só pareceu reforçar a resposta já esperada: ela é subordinada, silencia, mas não deixa de cumprir seu papel como esposa: volta a rir para Esteban, o acompanha em eventos políticos - mesmo discordando dos valores conservadores de direita do seu marido -, aparece publicamente com ele em festas e interações sociais importantes.
Como dito antes, a cada nova geração do romance vemos como as mulheres são - e precisam ser!- dependentes de uma figura masculina. Blanca, a primeira filha de Clara e Esteban, simplesmente se apaixona por Pedro Tercero García, um camponês que vive desde a infância nas terras de seu pai. Para uma mulher se apaixonar e fazer sexo com um membro de um grupo social inferior é escandaloso e custará a Blanca sua posição social. Grávida de Pedro Tercero, Blanca acaba se deixando convencer a se casar com o Conde de Santigny. Segundo o narrador, a própria Blanca nunca chega a saber o motivo pelo qual acaba aceitando o casamento, embora o motivo seja óbvio: manter seu status social. Alba, filha de Blanca e Pedro Tercero, parece ser a única personagem a quebrar o ciclo de passividade feminina de seus antecessores ao participar ativamente dos movimentos sociopolíticos da época, assumindo riscos reais e enfrentando o poder. No entanto, também sabemos que sua luta tem mais relação com o amor por Miguel do que a uma verdadeira consciência política. [em: Paradigmas patriarcales en el realismo mágico: alteridad femenina y ‘feminismo mágico’ en La casa de los espíritus de Isabel Allende]
De modo geral, vemos que em A Casa dos Espíritos, os silêncios estão ligados ao status social das personagens femininas. É assim que as camponesas, cozinheiras e empregadas domésticas passam pelo romance como sombras, sem nome nem voz. O discurso masculino e, ao contrário, o silêncio feminino na narrativa são efeitos sintomáticos das relações de poder estabelecidas entre os gêneros.
“Como estratégia política [...] abraçar o silêncio é claramente de valor limitado. O silêncio por si só não pode fornecer uma base adequada para uma teoria da literatura ou ação política concreta. Eventualmente, a mulher deve quebrar o silêncio e escrever, negociando os domínios complicados do dito e do não dito”. [em: Debra A. Castillo, Talking Back. Toward a Latin American Feminist Literary Criticism]
Reitero esse tema do silêncio porque estamos diante de um romance que se propõe a ‘dar voz’ e protagonizar a vida de mulheres. Porém, não devemos esquecer que, embora no realismo mágico seja possível observar um certo potencial transgressor do sistema patriarcal, e aqui temos a polifonia de vozes e realmente ouvimos mais o que as mulheres têm a dizer, é certo que, também, nos textos mágico realistas parece existir uma reconfiguração dos mitos patriarcais ao invés de sua transgressão.
No final das contas, o desejo cíclico do livro também repete, inevitavelmente, comportamentos e discursos patriarcais, gerações de mulheres silenciosas e subordinadas e o questionável movimento feminista centrado na burguesia. Apesar disso, minha experiência, no geral, foi coroada com o final frenético de descrições visuais incríveis, a possibilidade de finalmente conhecer profundamente alguns personagens, e ter a chance de testemunhar por um lado nada óbvio a explosão do golpe militar do Chile.
Conheça o site do nossa literatura: https://www.nossaliteratura.com/
Siga no Instagram: https://www.instagram.com/nossaliteratura/
Assista a live comentando todo o livro: https://youtube.com/live/owdaQxVgQtM?feature=share
E a partir do dia 04 de setembro, leremos Homens de milho, de Miguel Ángel Astúrias. Um livro magnífico, poético. Será incrível ler com todos vocês.