clube #6: o feminismo mágico
Estimada Isabel Allende, abrir o romance com um capítulo intitulado “Rosa, a bela” seria uma forma de homenagem?
Homenagem ou não para Cem anos de solidão, o fato é que temos em mãos um romance em que as personagens principais são mulheres. Como a própria narradora gosta de afirmar e reafirmar ao longo dos capítulos, apesar de acompanharmos diferentes gerações de mulheres da família del Valle, todas elas compartilham múltiplas características, sendo o idealismo ilimitado a que mais se sobressai.
A questão que está me fazendo refletir nesses pontos de representação feminina passa pelo fato de que essas personagens parecem mais idealizações de mulheres do que mulheres reais. E de onde vem esse idealismo? De acordo com o que lemos, a raiz dessa idealização vem, justamente, de uma visão masculina e patriarcal.
“Nívea, sua mulher, […] acompanhava o marido em suas ambições políticas, nas esperança de que, conseguindo ele um lugar no Congresso, ela pudesse obter o voto feminino, pelo qual lutava há dez anos, sem que suas seguidas gravidezes a fizessem desanimar”. Nívea é mãe de Rosa, a bela, de Clara, avó de Blanca e, vista como transgressora porque lutava pelo direito das mulheres. Mas, observem que ao mesmo tempo que “luta” do auto dos seus privilégios burgueses, continua servindo ao sistema de procriar e seguir cada passo do marido. No final das contas, continua sendo uma mulher vista com submissão e inferioridade.
O primeiro capítulo do livro aparenta ser confuso, complexo. Dezenas de personagens são citados, histórias do passado e presente se misturam, personagens ainda estranhos apresentados como se já o conhecêssemos; Há, ainda, a troca de narradores. Em alguns momentos do livro teremos a primeira voz de Esteban, que servirá como um “suplemento” ou contraponto para o resto da narrativa.
Essa maneira de usar o tempo, antecipar fatos como que só acontecerão depois é uma marca registrada do estilo realista mágico. Em narrativas construídas a partir dessa estética, o tempo presente ou o “tempo real” não importam tanto. Afinal, o que realmente importa são as pessoas, os fatos e como elas interagem e reagem diante de situações magico realistas.
Observe que os períodos de silêncio e elevação espiritual de Clara se alternam com os de consciência social, nos quais ela se dedica à caridade, atividade tradicionalmente ligada às mulheres de classe alta ou média alta. O esforço para reconhecer problemas de classe e gênero é, muitas vezes, denominado de não humano, como se fosse realmente quase impossível para uma mulher privilegiada conseguir perceber o seu entorno. E Clara somente percebe quando se fecha anos e anos em silêncio. No final das contas, o ato transgressor de não falar, apenas reforça o comportamento que o patriarcado já espera das mulheres.
O capítulo dois mostra Esteban saindo da cidade e indo para Las tres Marías, uma antiga fazenda da família há anos abandonada. Obviamente, por lá ele explora trabalhadores, não paga salários, abusa sexualmente das mulheres, e sustenta o gênio forte como uma característica normal, possível e aceitável para um homem bruto do campo. Férula, sua irmã, não tem poder de escolha como ele. É enclausurada em casa para cuidar de sua mãe há anos doente. “Sendo dotada de mau gênio igual ao do irmão, mas fora obrigada, pela vida e por sua condição de mulher, a dominá-lo e contentar-se”. Conhecer a fazenda Las tres Marías, me fez conhecer um pouco mais das pessoas que já viviam por lá. Não me agradou a forma que eles são apresentados, por serem pobres, quase nunca são nomeados, apenas indicados como “ignorantes”, “inocentes” e sem nenhuma capacidade intelectual, serviam apenas para carregar peso e baixar a cabeça.
O terceiro capítulo, Clara, a clarividente, mostra que, desde a infância, a menina tinha facilidade de interpretar sonhos, ver o futuro, movia objetos do lugar com a força do pensamento. Um estilo que já percebi em Allende são os marco de passagem do tempo, ela sempre deixa claro de que momento está falando. Toda aquela impressão inicial do primeiro capítulo fica apenas ali, porque todo o resto do livro é bem demarcado nesse sentido. A infância de Clara, a adolescência, o período que Esteban morou sozinho em Las tres Marías, os anos que Férula morou com o casal antes de Esteban a expulsar por ciúmes da sua relação com Clara… Aqui, enquanto o narrador questiona o aparato mágico da realidade, as personagens parecem conviver tranquilamente com isso. Até mesmo Clara, desligada do plano real, volta “à vida”, ou volta a ter consciência de sua existência, quando tem sua primeira filha, Blanca. A maternidade imposta é o sentido pra vida até mesmo de Clara.
“Nessa ocasião não me alarmei, supondo que recuperaria a normalidade, como acontecera depois do nascimento de Blanca, e, por outro lado, porque eu havia compreendido que o silêncio era o último refúgio inviolável de minha mulher”.
Da mesma forma que os silêncios de Clara eram seu refúgio inviolável, eles também reforçavam seus privilégios. Clara jamais se preocupou com afazeres domésticos, logo, em seus pensamentos ‘feministas’ não alcança a reflexão que inclua mulheres trabalhadoras, pobres, donas de casa que precisam equilibrar o mundo inteiro em 24h, todos os dias. Há um quê de superficialidade no trato desses temas que me incomoda, fica parecendo panfletário, no sentido de estarem ali para cumprir certa tabela de representação, mas não chegam nunca ao cerne da questão.
Um grande número de textos magico realistas vê seu potencial subversivo limitado pela reafirmação da alteridade feminina. O feminismo francês teorizou o termo alteridade e o chama de "feminino", enquanto o feminismo norte-americano o chama de "outro". Implicitamente, ambos os termos se referem às relações de poder entre o Sujeito com voz (autoridade) e o outro (subordinado). O Eu se reafirma e se reconhece em relação ao diferente, ao outro. A expressão 'alteridade feminina' aponta especificamente para o modo como o sujeito feminino é visto e construído na sociedade patriarcal por meio do olhar masculino (self), que exerce sua autoridade sobre o não-homem (outro), ou seja, a mulher. Da percepção falocêntrica da tradição patriarcal, o masculino é o Sujeito enquanto o feminino é o altérico, o outro. [em: Paradigmas patriarcales en el realismo mágico: alteridad femenina y ‘feminismo mágico’ en La casa de los espíritus de Isabel Allende]
Em vez de falar de 'feminismo mágico' e de um realismo mágico (masculino?), a diferença entre as obras realistas mágicas poderia ser estabelecida de acordo com o período de sua composição, uma vez que as escritas nos anos 20 ou 30 não têm as mesmas características das do 'boom' ou da chamada geração 'pós-boom'. ao qual pertencem muitas das escritoras incluídas no 'feminismo mágico', como Laura Esquivel e Isabel Allende.
Como sugerido por Lloyd Davies em seu estudo Isabel Allende: The House of the Ghosts (Londres: Grant & Cutler, 2000), a geração pós-boom se afasta de seus antecessores na perda do uso magistral da técnica narrativa e da referência enciclopédica que caracteriza um grande número de escritores do boom. Outras diferenças, de acordo com Davies, são que a literatura pós-boom usa uma proporção maior de elementos da cultura popular, deleita-se com o colapso consciente da divisão clássica entre o estilo culto e popular na escrita e exibe uma extraordinária heterogeneidade textual ao codificar a autobiografia, literatura testemunhal, história oral, documentação política e textos midiáticos, entre outros. [em: Paradigmas patriarcales en el realismo mágico: alteridad femenina y ‘feminismo mágico’ en La casa de los espíritus de Isabel Allende]
Várias situações que lemos nesses capítulos iniciais do romance mostram que certas personagens femininas parecem perpetuar sua condição de sujeitos inferiores de acordo com as normas sociais estabelecidas sem que haja uma estratégia real de quebrar a opressão já naturalizada, uma condição indispensável do feminismo.
Em entrevista, Isabel Allende comentou sobre a questão de quererem classificar seus romances, principalmente A casa dos Espíritos, como um livro ‘feminista mágico’: "Porque eu não acho que a literatura tenha gênero, e eu não acho que seja necessário criar um plano para escrever como uma mulher, porque isso parece uma espécie de autossegregação estranha para mim".
Essa está sendo uma releitura para mim. Reencontro A casa dos espíritos após sete anos. Lembro que gostei bastante quando li a primeira vez, agora, continuo gostando, mas, invariavelmente, me pego pensando e questionando nas camadas que Allende poderia ter trabalho com mais afinco, principalmente nesses quatro capítulos iniciais do livro. Veremos o que nos aguarda adiante.
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Obrigada por sua leitura.