clube #5: usar corpos femininos como uma ponte para o além
A casa dos espíritos (1982), segundo livro do Clube Nossa Literatura em parceria com o Memorial da América Latina, escrito pela chilena Isabel Allende ostenta desde o seu lançamento várias alcunhas - feminista, mágico, cópia de cem anos de solidão, revolucionário, mais do mesmo, inaugural do pós-boom -, aqui, o que mais nos interessa no momento é o que prega um tal de “feminismo mágico”.
O realismo mágico, por si, continua sendo uma estética de escrita controversa. Partindo do desejo de definir origem, a possibilidade de incluir limites geográficos, listar autores que utilizaram a técnica e, a partir disso, questionar a necessidade de sua existência.
Vamos partir do ponto em que a transgressão é a ‘principal’ característica do realismo mágico. Principal e inerente, afinal, para que o fluxo do mágico transcorra entre os caminhos do real é preciso que exista a incorporação do outro, do excêntrico, dos marginalizados ao centro do que chamados de discurso privilegiado hegemônico.
“Os textos mágico realistas são subversivos: sua intermediação, ao mesmo tempo, encoraja a resistência às estruturas políticas e culturais monológicas, uma característica que tornou o modo particularmente útil para escritores em culturas pós-coloniais e, cada vez mais, para as mulheres.” [Em: Magical Realism: Theory, History, Community, de Lois Parkinson Zamora y Wendy Faris].
Recuperar aquilo que é considerado periférico a partir da desconstrução do discurso hegemônico é uma forma de existência do realismo mágico. Poderíamos questionar: até que ponto isso seria “útil” para as mulheres? É natural que o discurso utilitário passe pela teoria estética mas, desde já, antecipo que este não será o caminho interpretativo que vou direcionar nossa leitura do mês. Assim como a arte não precisa “servir” para nada ou ninguém, esse discurso que questiona a funcionalidade da literatura magico realista - principalmente pela literatura escrita por mulheres - não será nosso guia por aqui.
Então, partindo desse ponto, a estética mágico realista se constitui de uma forma polifônica de escrita que poderia dar voz para figuras marginalizadas - como as mulheres e a questão de gênero - e seria capaz de desestabilizar o cânone e o discurso falocêntrico patriarcal?
Muitas indagações para um único enunciado. Os estudos da pesquisadora Susana Reisz [em: Narrativa femenina en América Latina: prácticas y perspectivas teóricas/Latin American Women’s Narrative: Practices and Theoretical Perspectivas] elucidam algumas delas. De acordo com a pesquisadora, os textos que usam a estética do realismo mágico, na verdade, reiteram a rede tradicional de narrativas patriarcais.
“O potencial subversivo do realismo mágico em termos de questionamento do papel subalterno das mulheres e a incorporação de estratégias eficazes que transgridem com sucesso o sistema falocêntrico parece não ter sido suficientemente explorado.” [em: Paradigmas patriarcales en el realismo mágico: alteridad femenina y ‘feminismo mágico’ en La casa de los espíritus de Isabel Allende].
Apesar do caráter subversivo realizado por meio do humor e do dialogismo, vários textos mágico realistas têm seu potencial subversivo limitado pela reafirmação da alteridade feminina. “O realismo mágico continua o processo de desencantamento da cultura patriarcal consigo mesma e suas formas dominantes de representação realista iniciada pelo surrealismo. [...] No entanto, - como o surrealismo -, o realismo mágico também perpetua alguns dos estereótipos da cultura patriarcal, usando corpos femininos como uma ponte para o além, por exemplo” [em Ordinary Enchantments, de Wendy Faris].
Por esse reforço de arquétipos e estereótipos femininos já podemos questionar a natureza transgressora desse modo de escrita.
Mesmo sendo escrito por uma mulher - que se declara feminista, e aqui não questiono esse ponto em específico - A casa dos espíritos também entra nesse grupo de obras que utilizam o realismo mágico e terminam por reforçar o discurso hegemônico patriarcal?
Resolvi escrever um texto que traz em sua base vários questionamentos sobre o realismo mágico, feminismo e noções de escrita ‘feminina’. Falaremos bastante desse assunto ao longo desse mês de leitura. Espero que esse texto desperte reflexões durante a leitura do livro.
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Obrigada por sua leitura.