clube #4: o último argumento do rei
"no meio do pátio de armas, vários touros eram degolados, todo dia, para se amassar com seu sangue uma argamassa que faria a fortaleza invulnerável"
Quando O reino deste mundo caiu em minhas mãos, anos atrás, não soube aproveitar tão bem.
Digo que não soube no sentido de ter lido sem tanta afeição, acredito. Não fazia ideia do que seria esse real maravilhoso que o autor tanto falava no Prólogo do livro e no que essa estética iria influenciar em minha leitura. Mesmo sabendo que, no final das contas, não precisamos saber teorias e contextos para que um livro seja marcante e interessante.
É claro que todo esse panorama pode, sim, deixar a experiência mais intensa, aprofundada. Eu gosto disso.
Hoje, sei que jamais vou esquecer da sensação de ler pela primeira a descrição deslumbrada do Palácio de Sans-Souci, o maior forte já construído na América Latina por Henri Christophe, o ex-escravizado que participou da primeira revolta haitiana para, logo depois, se autoproclamar rei e protagonizar um dos reinados mais cruéis e violentos já testemunhados.
Chegamos ao final do livro. Lendo as partes III e IV passamos por diferentes níveis de deslumbre. Desde o horror, ao belo e ao estarrecedor. Finalmente, vemos Ti Noel ser um homem livre “embora marcado por dois ferros, Ti Noel era um homem livre. Andava agora sobre uma terra em que a escravidão havia sido abolida para sempre”. Tragicamente irônico é perceber que sua liberdade logo é posta de lado assim que põe os pés em sua terra novamente. O que ele vê na Terra dos Grandes Pactos é desolador. Mais de 10 anos se passaram, as grandes casas de outrora agora são apenas ruínas, tanto mortos que já não há números que deem conta e a sensação de liberdade corre solta como areia em vendaval.
““Presos”, pensou Ti Noel, ao ver que os guardas eram negros, mas que os trabalhadores também eram negros, o que contrariava certas noções que tinham adquirido em Santiago de Cuba, nas noites em que pudera ir a alguma festa de tambores no Conselho de Negros Franceses”.
Quando Carpentier fala que o velho Ti Noel se deteve para apreciar, maravilhado, o espetáculo mais inesperado e imponente nunca antes visto, ele estava falando um pouco de si. Quando viajou a primeira vez ao Haiti, Carpentier ficou sem palavras. A visão da Cidadela de La Ferrière, montanha sobre montanha, o palácio gigantesco envolto em nuvens. Tudo era um deslumbre, tudo era razão do maravilhoso. Por isso, não deixa de ser marcante quando lemos, a certa altura, que o que “mais assombrava Ti Noel era a descoberta de que esse mundo prodigioso, como não o haviam conhecido os governadores franceses do Cabo, era um mundo de negros”.
“No meio do pátio de armas, vários touros eram degolados, todo dia, para se amassar com seu sangue uma argamassa que faria a fortaleza invulnerável.”
A obra inverossímil de Henri Christophe já levava mais de 12 anos. Todos os dias novos escravizados chegavam para a construção, subindo tijolos avermelhados para erguerem paredes que se mantém em pé até hoje, como um lembrete de tempos terríveis. “Deviam-se a uma escravidão tão abominável como que a conhecera na fazendo de Monsieur Lenormand de Mezy. Pior ainda, pois havia uma infinita miséria em ver-se espancado por um negro, tão negro como os demais, tão beiçudo e acarapinhado, tão nariz largo como os demais; tão igual, tão malnascido, tão marcado a ferro, possivelmente, como os demais. Era como se em uma mesma casa os filhos batessem nos pais; o neto, na avó; as noras, na mãe que cozinhava”. Naquela realidade, a morte de um negro nada custava ao tesouro público. Por isso, todos os dias Christophe ordenava o assassinato de várias pessoas, argumentando que eram preguiçosas e seriam exemplos ruins para os demais.
São as canções do passado de Ti Noel entoadas para embalarem insultos ao rei Henri Christophe que nos tiram do transe causado pelo horror. É impossível não se horrorizar. Quando Cornejo Breille foi assassinado - o capelão espanhol - passamos a entrar nos novos ares de revolta. E Henri Christophe sabia disso. “O silêncio prolongado demais de uma cidade que deixou de acreditar no silêncio e que só um recém-nascido se atreveu a romper com um vagido ignorante, reencaminhando a vida para sua sonoridade habitual de pregões, adeuses, mexericos e canções ao estender a roupa no sol”.
Carpentier, numa crescente, constrói o relato partindo do delírio do monarca, que passa a enxergar e ouvir coisas que ninguém mais consegue. “O grande salão de recepções, com suas janelas abertas nas duas fachadas, fez com que Christophe escutasse o som dos saltos de suas próprias botas, aumentando sua impressão de solidão absoluta.” Aquele que um dia fora cozinheiro na rua dos Espanhóis, dono do Albergue La Corona, passou a ser o homem que fundia moedas com suas iniciais, sobre a orgulhosa divisa “Deus, minha causa e minha espada”.
Essa aproximação com o Deus dos cristão brancos foi mais um dos artifícios que o rei utilizou para que seu reinado fosse reconhecidamente europeu. “Christophe se mantivera sempre à margem da mística africanista dos primeiros caudilhos da independência haitiana, procurando, de todo modo, dar à sua corte uma aparência europeia”. No dia 8 de outubro de 1820, pediu para os seus pajens - os poucos que ainda restavam no Palácio - que o banhassem e o vestissem com o mais luxuoso uniforme militar, cheio de medalhas e signos sagrados que o tornavam da realeza. Henrique I, como gostava de se autodenominar o "regenerador e benfeitor da nação haitiana", "o criador de suas instituições morais, públicas e guerreiras", atirou em sua própria cabeça quando se viu sozinho, fraco e abandonado. Tirar a própria vida foi o seu último argumento dos reis. O título do capítulo seis da terceira parte não poderia ser mais claro, “Ultima ratio regum”, a força é o último argumento dos reis. Porém, me pergunto, há realmente força ou coragem nesse argumento de Christophe?
Não de se imaginar que a ruína do monarca seria ‘herdada’ pelo resto de toda a sua família. Filhas e esposa saíram às pressas do Palácio com a proteção de Solimán, sim, o mesmo Solimán de Paulina Bonaparte. Na rua, ouviram xingamentos e revoltas: “Em país de brancos, quando morre um chefe se corta a cabeça de sua mulher”.
Enquanto o poça de sangue envolvia o seu corpo, o Cabo Haitiano ardia em revoltas. E para que o corpo do rei não fosse profanado, ele foi enterrado no mesmo dia de sua morte. Antes do corpo ser mergulhado em argamassa branca, um de seus dedos foi cortado e dado à esposa. Afundando lentamente, como nos descreve Carpentier, Henri Christophe virou pedra em algum buraco da sua cidadela. Sempre megalomaníaco, sonhava com a eternidade no reino deste mundo. Até hoje, mesmo com o espetáculo destruidor do tempo, terremotos e desgastes, a fortaleza continua de pé e o corpo de Christophe eternizado. “Depois de ter escolhido sua própria morte, Henri Christophe ignoraria a podridão de sua carne, carne confundida com a própria matéria da fortaleza, inscrita dentro de sua arquitetura, integrada a seu corpo baseado em contrafortes. A Montanha do Gorro del Bispo, inteira, transformara-se no mausoléu do primeiro rei do Haiti”.
Estando aí o maravilhoso em sua forma pura e perfeitamente lapidada, avançamos para a última parte do livro.
Foi através da noite das estátuas que ficamos sabendo do paradeiro da rainha e as duas filhas de Henri Christophe. A surpresa chega quando descobrimos que Solimán está com elas. É através dele que temos uma das cenas mais emblemáticas do livro. Um derramamento maravilhoso de impressões, surpresas e deslumbre através de uma fé inquestionável. O poder está justamente nisso, Solimán acredita piamente que aquela estátua de Vênus de Canova era Paulina Bonaparte. A certa altura, já não importa se era realmente uma estátua ou uma mulher de carne e osso porque Carpentier faz do verbo a carne.
Orgulhosamente, Ti Noel foi um dos que haviam iniciado o saque ao Palácio de Sans-Souci. As ruínas que habitava eram estranhamente decoradas com obras de ouro, móveis de artistas renomados da época, objetos raros e caríssimos. “Mas o que fazia o velho mais feliz era a posse de uma casaca de Henri Christophe, de seda verde, com punhos de renda salmão, que exibia a toda hora, realçando seu aspecto real com um chapéu de palha trançada, amassado e dobrado à maneira de bicorne, ao qual acrescentava uma flor encarnada à guisa de distintivo”. Ti Noel imaginava ser rei, por isso acreditava, “ditava ordens ao vento. Mas eram decretos de um governo aprazível, já que nenhuma tirania de brancos nem de negros parecia ameaçar sua liberdade”.
Com o surgimento do agrimensores, o sonho utópico delirante de Ti Noel chega ao fim. Eles invadem as ruínas, medem, cercam e o expulsam do lugar pouco se importando com seus protestos. “Ti Noel soube, por um fugitivo, que as tarefas agrícolas se tornaram obrigatórias e que o látego estava agora em mãos de mulatos republicanos, novos senhores da planície do norte”. O sonho de Mackandal não previu essa questão do trabalho obrigatório. Por certo, nem Henri teria previsto que aquelas terras iriam propiciar uma aristocracia confusa e perplexa, que agora se apoderava das antigas fazendas e dos privilégios.
O velho começava a se desesperar ante esse infindável reviver de cadeias, esse renascer de grilhões, essa proliferação de misérias, que os mais resignados acabavam por aceitar como prova da inutilidade de toda rebeldia.
A partir do desespero, Ti Noel recordou Mackandal. Resolveu fazer como ele e se despojou de sua vestimenta de homem. Surpreso com o quão fácil era fazer isso, passou a ser ave, garanhão, formiga, vespa. Quando tentou ser ganso, percebeu que não lhe bastava apenas se transformar em um e acreditar que todos fossem iguais. É curiosa a escolha de metáfora que Carpentier faz para encerrar o livro. Fala dos gansos selvagens e seus costumes, e como a aceitação por parte dos outros vem somente com gerações e mais gerações familiares.
Para ser livre, não bastavam revoltas. Para conquistar igualdade, não bastavam revoluções. O problema da escravidão, o problema da desigualdade de classe e raça é uma ferida profunda com raízes tão fortes e extensas que parece impossível extirpá-las. A burguesia não surgiu do nada, são gerações de privilégios oriundos de exploração - muitas vezes de mão de obra escravizada - para a manutenção do sobrenome, da riqueza e da descrença de um porvir diferente e igualitário. O desespero e a falta de esperança de Ti Noel é justamente o resultado que a burguesia colonizadora espera que aconteça depois de qualquer tentativa de revolução e mudança. Quando somos levados a acreditar que não há mais solução, deixamos de lutar por mudanças no presente e pelo futuro.
Era um corpo de carne esvaída. E compreendia, agora, que o homem nunca sabe por quem padece e espera. […] pois o homem anseia sempre por uma felicidade situada mais além da porção que lhe é outorgada. Mas a grandeza do homem está precisamente em querer melhorar o que ele é.
Carpentier argumenta que no Reino dos céus não há grandeza a se conquistar, tudo já está preestabelecido. “Por isso, esgotado pelas penas e pelas tarefas, belo dentro de sua miséria, capaz de amar em meio às pragas, o homem só pode encontrar sua grandeza, sua máxima medida, no Reino deste mundo”.
Acima de tudo, Carpentier nos lega uma história de utopia e esperança. Como se desejasse espantar o sentimento de letargia, ressignificando a fé em nossa realidade maravilhosa para percebermos, então, que nem tudo está perdido e há, sim, sentido em lutar e continuar lutando.
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Agradeço a todos que estão participando do Clube Nossa Literatura em parceria com o Memorial da América Latina.
Para finalizarmos a experiência de ler esse livro maravilhoso, teremos live de encerramento com um especialista na obra.
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