clube #3: o que resta depois do caos?
"por esse caminho, chegou-se muito rapidamente ao horror"
20 anos após a grande rebelião, vemos o que restou da Ilha. Ti Noel com seus doze filhos, Monsieur Lenormand de Mezy tornou-se um maníaco por sexo e alcoólatra e tudo parecia seguir uma estranha ordem superior.
Apesar das crueldades ainda praticadas contras os escravizados e uma constante atmosfera de sadismo, todos eles continuaram reverenciando os poderes de Mackandal. “Ti Noel transmitiu os relatos do mandinga a seus filhos, ensinando-lhes canções muito simples que havia composto em sua glória, enquanto penteava e escovava os cavalos. Além disso, bom era recordar sempre o maneta, já que o maneta, afastado destas terras por tarefas importantes, regressaria a elas no momento menos esperado.”
Não há dúvidas que a prosa de Carpentier se erige no deslumbramento e, muitas vezes, essa sensação é causada por uma crescente de informações e acontecimentos. Exemplo perfeito lemos no capítulo O pacto maior. Desejando que abracemos de vez as experiências sensoriais, ele começa aguçando nossa audição e visão com raios e trovões, o tato com a sensação de estarmos enxarcados junto com o grupo reunido no meio da tempestade e o olfato e o paladar quando todos provam o sangue ainda quente do porco sacrificado para firmarem o estado maior da grande sublevação. “O deus dos brancos ordena o crime. Nossos deuses nos pedem vingança”.
Dias após o pacto, fez-se soar uma trompa de caracol que foi respondida em ecos em todos os montes e selvas. A partir desse momento, o caos maior é instaurado. Homens brancos são mortos, mulheres brancas são violentadas antes de serem mortas, animais envenenados, barris de vinhos quebrados, saques de joias, moveis, pratarias, roupas e tudo o que for possível levar. “Depois de molharem os braços no sangue do branco, os negros correram para a moradia principal, dando gritos de “morra!” aos amos, ao governador, ao bom Deus e a todos os franceses do mundo”. A vingança confirmada pelos Loas africanos finalmente chegara aos negros.
“Os escravos tinham, pois, uma religião secreta que os alentava e unia em suas rebeldias”. Não é difícil prever que até quem não acredita, passa, pelo menos, a duvidar da existência de poderes ou forças superiores. “Mas por acaso uma pessoa culta haveria de se preocupar com as crenças selvagens daqueles que adoravam uma serpente?” A serpente como símbolo perfeito do eterno retorno, da ação e reação, surge aqui novamente para reafirmar para onde a narrativa quer nos levar. É preciso estar atento e guardar detalhes. Falo isso porque nesse quarto capítulo, pela segunda vez, o cozinheiro Henri Christophe é mencionado. Perceberam a primeira vez?
Com o cenário de desolação e encurralados com a ruína, grande parte das famílias brancas partiram para Santiago de Cuba. Imaginem, então, o que seria possível estar acontecendo na cidade nesse momento: “Os antigos colonos, longe de lamentar-se, estavam como que rejuvenescidos. […] Os que nada tinham podido salvar se deleitavam na desordem, em viver o dia presente, em sua ausência de obrigações, tratando, no momento, de encontrar o prazer em tudo”. Para eles, o sentido da vida era explorar mão de obra escravizada, torturar, violentar. Quando a revolta derrubou tudo isso, perderam o rumo e, como justificativa, facilmente caíram no sadismo. Sintomático e previsível.
Ti Noel também foi levado para Santiago de Cuba, foi lá que viu a grande quantidade de cães raivosos e serpentes peçonhentas que estavam sendo encaminhadas para o Haiti, sua terra, para pôr fim, definitivamente, na vida de pessoas negras.
A surpresa de Ti Noel foi rapidamente engolida pelo fato do surgimento de Paulina Bonaparte com o marido Victoire Leclerc, fato real, que traz à memória o trecho do Prólogo em que Carpentier afirma que usou fatos históricos “a verdade” para escrever o seu romance (falei sobre as consequências dessa afirmação no texto sobre o Prólogo). Pelo o que lemos, vemos que a irmã de Napoleão Bonaparte adorava ser vista nua, não se importando tanto com as razões que os levaram a desembarcarem no Haiti. “Leclerc lhe falava, com o cenho franzido, de sublevações de escravos, de dificuldades com os colonos monarquistas, de ameaças de toda espécie. […] Mas Paulina não lhe prestava atenção”. A estadia perfeita de Paulina começou a ruir quando um de seus cabelereiros desabou vomitando sangue fétido coagulado. “Um horroroso desmancha-prazeres começara a zumbir no sonho tropical de Paulina Bonaparte”.
Claro e evidente, a mulher perdeu as estribeiras. ficou lelé da cuca, aterrorizada, entrou em mania e só passou a ouvir o negro Solimán. “Solimán já não se separava de Paulina, dormindo em seu quarto sobre um tapete encarnado”. Claro e evidente, novamente, mesmo que fosse a pessoa de sua maior confiança no momento, ele ainda era um negro que não deveria, jamais dormir em uma cama. Mais uma vez, pequenos detalhes poderosos. Após um ano na ilha, Leclerc faleceu da febre amarela e, inevitavelmente, Paulina retornou.
A partida de Paulina assinou, de vez, o fim da sensatez na colônia. Como estavam sem esperança de retornarem ao bem-estar de antigamente, todos entregaram-se a uma vasta orgia. “Era preciso acabar com o vinho, extenuar a carne, voltar do prazer antes que alguma catástrofe acabasse com uma possibilidade de gozo”. O que nos leva para o outro lado, que tanto os cães quanto as serpentes enviadas não surtiram o efeito esperado, pois “os Grandes Loas favoreciam as armas negras”.
Acho interessante essa escolha do Carpentier de finalizar essa segunda parte do livro com a aparição de sacerdotes, mesmo em meio ao caos sádico sexual que parecia envolver uma parte da população branca. “Por esse caminho, chegou-se muito rapidamente ao horror”. Seria o prenúncio de mais sublevações a partir da fé?
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