#clube 16 - Ave, cheia de Graça, abençoe a travesti para nos guiar
Nossa Senhora do Barraco, de Gabriela Cabezón Cámara, publicado originalmente em 2009, conta a história de Cleópatra, uma travesti que, após sofrer vivendo na prostituição, é iluminada pela aparição da Virgem Maria e decide buscar novos caminhos de vida para si e para toda a sua comunidade.
O livro começa com um ritmo frenético, o que me deixou confusa por um tempo.
Não sei se vocês têm essa mesma impressão, mas, quanto mais livros contemporâneos escritos por mulheres latino-americanas eu leio, mais percebo um tom de urgência generalizado. Parece que essas obras têm pressa para dizer o que precisam, como se suas vozes tivessem sido silenciadas por tanto tempo que agora fosse necessário correr para se fazer ouvir.
Eu senti essa urgência, essa desorganização caótica proposital que a autora quis transmitir.
“A escolha do tom e do narrador foi, como sempre, a mais difícil: como não sei para onde uma história está indo enquanto escrevo, e não me importo particularmente com o enredo, é o ponto de vista e o tom que decide tudo, o que move o romance para frente” (Gabriela Cabezón Cámara para Nora Domínguez, em "Conversaciones").
Acredito que, por isso, a primeira característica que salta aos olhos é a constituição de uma sutil polifonia. Se tantas pessoas foram marginalizadas e silenciadas por tanto tempo, todas elas querem falar, querem que suas histórias sejam ouvidas. Percebo que a literatura contemporânea tem explorado cada vez mais essas conexões entre identidade e marginalidade, o que nos obriga a olhar, inevitavelmente, para subjetividades historicamente silenciadas.
Lemos a voz de Qüity, uma jornalista que busca entender o fenômeno em torno de Cleópatra. A linguagem utilizada por Qüity oscila entre momentos poéticos e trechos marcados por vulgaridade.
A personagem Cleópatra, ao perceber que sua história está sendo narrada por Qüity, reivindica seu próprio espaço na narrativa e passa a contar sua versão dos acontecimentos. Por isso temos alternância de vozes entre capítulos, inserções que fazem o tom e o ritmo mudarem completamente. Acredito que, por isso, me senti um pouco perdida no começo.
Particularmente, sou encantada por livros que fazem da linguagem parte essencial da construção de sentido. Nesse caso, testemunhamos uma abordagem totalmente nova. Cleópatra questiona e desafia o convencional ao não aceitar que sua história seja contada por um discurso que não é seu, que não lhe pertence.
Assim como vimos, por volta das décadas de 1950 e 1960, um intenso movimento de busca por identidade e representatividade na América Latina, hoje há um novo giro nessa busca, agora com um alcance ainda maior. Não se trata apenas de encontrar uma única identidade, mas de reconhecer um emaranhado de subjetividades construídas a partir de uma realidade cada vez mais fragmentada.
É por isso que há urgência e ferocidade. É por isso que Cleópatra se apropria do discurso religioso, pois só assim será capaz de moldá-lo à sua experiência.
Ainda não finalizei a leitura, mas acredito que esse será um livro favoritado.
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boa tarde. eu gostaria de participar do clube, mas não tenho instagram. como faço para acessar o link?
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