#clube 15 - quando a sexualidade e o humor se convertem em filosofia de vida
A sordidez da existência.
Trilogia suja de Havana (1998) do cubano Pedro Juan Gutiérrez, foi o livro polêmico de janeiro do clube nossa literatura em parceria com o Memorial da América Latina.
Achei interessantíssimo o movimento de amor e desprezo que esse livro despertou nos leitores. Ao passo que há unanimidade em reconhecer a potência narrativa e o talento de Gutiérrez, há o movimento de achar o livro fastidioso. Isso porque os contos giram ao redor de uma Havana em ruínas, com vidas e sonhos arruinados. Um melancólico espetáculo urbano. Para aqueles indivíduos não há sinal de dignidade. O que resta são cenas de sexo sujo, sordidez, escatologia, suor, odores, xingamentos e uma raiva lasciva que permeia cada história.
O protagonista não se reinventa, porque não há continuidade de um ponto de partida. Sua vida parece estática ou, no máximo, presa em um looping que sempre se reencontra. Sua personalidade é quebrada, seus sonhos estão perdidos e o mundo inteiro se despedaça diante de seus olhos odiosos.
A constante sensação de deslocamento em cada conto nos deixa à deriva. Como se Pedro Juan, o protagonista, alterasse sua imagem em cada história se consolidando como discurso em eterna construção. Ele é apenas o que diz. Adiante, já será outro, e mais outro, e mais outro… sem nunca parar, sem nunca se estabilizar porque o mundo em que vive é absolutamente instável. Então, ao se encontrar diante da impossibilidade de uma identidade fixa, ele se nega a reconhecer a ordem da oficialidade que dita essas supostas identidades e formas de existir.
Já debatemos inúmeras vezes no clube sobre o olhar que a sociedade moderna destina para o discurso. O entendimento sempre perpassa pelo sentido de importância que o discurso possui na manutenção de poder. Quem controla o discurso, controla o poder. Pedro Juan pode ser visto, então, como uma figura emblemática e representativa de uma parcela da sociedade que “deveria” ser silenciada. Marginalizar esses indivíduos é tentar controlar sua raiva, sua revolta, é tentar silenciar suas vozes que clamam por mudanças, que clamam pelo bem-estar comum, que clamam por humanidade e dignidade.
A cada conto, testemunhamos uma crescente ‘animalização’ das pessoas. Tudo vai ficando mais sujo, dúbio, turvo, fétido, nojento, feio, cruel. Nesse cenário de crise silenciada pelo poder, só o que é abjeto parece conseguir criar raízes.
Trilogia suja de Havana é um testemunho de reflexos infinitos sobre o fracasso da realidade. O protagonista e todos aqueles que vivem como ele terminam caindo num espaço marginalizado. E como a realidade se mostra vil e fracassada, o jeito é viver em eterna fuga, que resulta em eterna instabilidade. Talvez, justamente por isso, todos parecem viver em razão da ruptura com tradições e instituições, porque só a partir do oportunismo é que eles vislumbram alguma garantia de sobrevivência dentro do caos.
Essa urgente necessidade de sobrevivência nos atinge como um tapa no rosto. Conhecemos pessoas que vivem diariamente além do limite. É de se compreender que vivam numa cadeia de desencadeamentos de atos instáveis, impensados e corruptos. Não há como medirmos aspectos morais ou éticos nesse contexto. O fracasso é evidente e a luta pela sobrevivência um movimento inevitável.
Esses indivíduos precisam de respiro, precisam de algo a mais. Nós leitores também. É nesse momento que Gutiérrez consegue encaixar perfeitamente um humor amargo que escorre pelas frases e o sexo brutal que parece envolver todo mundo. O humor e a sexualidade se tornam nossas boias de salvação, os respiros necessários dentro desse caos. É por isso que eles recorrem tanto para esse caminho.
Há uma força imensurável no ato de usar o corpo para se fazer ouvir. Essa idealização do corpo como peça fundamental de luta faz parte de uma espécie de processo de tomada de consciência. A grande questão é que não há redenção, não há final feliz, há apenas a realidade dura que nos chega a cada amanhecer. O caos passa a ser assimilado sem maiores dramas e tudo o que permeia a sexualidade e o humor trágico se convertem em filosofia de vida. É isso o que nos resta, resistimos, mas é somente isso que nos resta.
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