clube #10 - Sem a terra, de que vale a vida?
Homens de milho foi o terceiro livro lido no clube nossa literatura e memorial da américa latina e a experiência não poderia ter sido melhor.
O cacique Gaspar Ilóm morre envenenado, mas supera a morte ao se entregar para as águas de rios caudalosos. Quando retorna, percebe que sua terra já não existe e seu povo pereceu. De que vale a vida sem a terra, o milho e as pessoas?
Construído a partir de propostas de vanguardas estéticas, vimos que Homens de milho também se alimenta de textualidades fundacionais como o Popol Vuh, Rabinal Achi e o Chilám Balám.
Astúrias levou mais de 20 anos no processo de escrita e maturação desse romance.
“Homens de milho tem início com a contenda entre os indígenas que habitam tradicionalmente as terras de [Gaspar] Ilóm e os ladinos que vivem nas cercanias, imersos no modo de produção do milho; alimento sagrado para os indígenas e mercantil para os ladinos”. Agora que finalizamos o livro, é possível enxergar o funcionamento do todo romanesco: as seis partes que compõem a história dedicam as quatro primeiras para narrar os confrontos entre indígenas e ladinos e as duas últimas para resgatar valores culturais indígenas perdidos durantes os combates.[1]
Lemos, ainda no começo, que Gaspar Ilóm é morto envenenado, mas supera a morte e volta para o seu povo. Porém, para o seu desalento, todos foram dizimados. Com o extermínio das pessoas e do milho, ele não vê sentido em continuar sua jornada terrena e se lança de volta ao rio. É a partir desse momento que a figura heroica de Ilóm dá lugar para a figura mítica e lendária. Ele não é mais uma pessoa, ele agora é uma ideia, um sentimento, uma força que renasce em todos aqueles que lutam pela terra, pelo milho e pelas pessoas. Com essa ideia de renascer ou, até mesmo, de imortalidade, a figura mítica de Ilóm sobrevive ao tempo e ao esquecimento. “Ao penetrar no terreno da desmemória, Goyo Yic também tem o mesmo destino que o povo de Ilóm: vencido pela cultura dominante, perde sua origem, suas raízes e sua identidade”[2].
Esse sentimento de desmemória, perda de origens e identidade acomete o próprio Astúrias. Tendo que viver em exílio em Paris – o que o aproximou bastante de Alejo Carpentier – ele passou a ter uma visão dupla da América. A questão de identidade foi um tema muito marcante e recorrente na literatura latino-americana do século XX, justamente por ser um período de constantes e sucessivos golpes militares.
Tanto Carpentier quanto Astúrias tinham a preocupação de como contar a história da realidade latino-americana. Claro, cada um com duas abordagens e limitações, mas que partiam de um mesmo ponto: a descrença que parâmetros europeus – como o surrealismo e visão de Velho Mundo – fossem capazes de dar conta do ser americano. Como vou contar a história? questiona Astúrias, talvez, partindo do ponto em que precisava falar sobre o tema dos povos originários, dos ditadores e do imperialismo dentro da realidade guatemalteca. “Então, a preocupação de “como escrever?” é o que os faz [Carpentier e Astúrias] teorizar sobre a realidade americana, no caso de Carpentier com uma proposta de "Real Maravilhoso", no caso de Miguel Ángel Asturias, considerar que a realidade guatemalteca poderia ser contada ou narrada como se fosse um grande sonho, ou seja, é aqui surge essa busca por instrumentos”[3].
Ao perceberem que o mágico é o cotidiano, então percebem que é isso que seria contado. Para isso, Astúrias recorreu a um recurso gigantesco: a linguagem.
“Astúrias começa a renovar a língua, diante de uma norma linguística narrativa que existia na época; que era escrever de forma cronológica, escrever de forma realista, fazer aparecer no romance um reflexo exato da realidade, Astúrias começa o que passa a ser chamado de "O Novo Romance Latino-Americano", porque há uma renovação na linguagem, mas não apenas uma renovação na linguagem, uma renovação também da crítica contra a forma em que está escrito, uma proposta estética que também tem um caráter ideológico”[4].
Em Homens de milho, quanto mais nos envolvemos e aprofundamos no livro, mais percebemos esse desejo latente de contar a América. Mas não somente contar, também se distanciar do que fizeram os conquistadores, para, enfim, ultrapassar o documento e acessar todas as maneiras pelas quais nossa história se manifesta, inclusive com a magia.
A literatura latino-americana surge nas crônicas. O que se pode chamar de real maravilhoso é o espanto que o homem sente diante de uma realidade nova, desconhecida, mas que para nós, latino-americanos, ou para os indígenas, não é nada de maravilhoso, porque é a nossa vida cotidiana e a realidade que nos rodeia.
Realismo mágico é a realidade que o homem americano vive com seus ditos, lendas, animismo, feitiçaria, costumes, linguagem, que também não são compreendidos, então o homem vive em uma realidade maravilhosa com exuberância e com costumes mágicos que para nós não são quaisquer costumes mágicos, mas nossa vida diária.
Lembram que no primeiro texto que enviei aqui na Newsletter comentei sobre a influência do livro Popol Vul nas histórias de Astúrias? Então, é de lá que surge a famosa proposição de que o homem era feito de milho. Astúrias é um mestiço que foi criado com indígenas. As histórias que ouvia quando era criança serviram para alimentar o fator “mágico”. São lendas herdadas da cultura oral Maia, que foram sendo repassadas e recontadas – vemos o exemplo perfeito disso no capítulo de Maria Tecún e do Correio-Coiote no livro. As histórias ganharam título de mágicas porque eram incompreensíveis para os europeus conquistadores. Tanto Astúrias quanto Carpentier alimentaram seus romances com esses mitos e lendas, superstições e crenças porque queriam ressignificar o que antes era visto como bárbaro. Se até então a civilização era o Velho Mundo que vivia em guerra e destruição, a solução era ressignificar a “barbárie” do Novo Mundo apresentando o cotidiano americano não mais como incompreensível, mas como maravilhoso e, por que não, mágico?
Certa vez, em entrevista, Astúrias falou sobre Homens de milho da seguinte maneira:
“Todo o meu trabalho se desenrola entre essas duas realidades: a guatemalteca; o outro imaginário; [...] um romance em que apresento como aspecto social da vida americana um fato tão comum entre nós e que todos vivemos, de acontecimentos reais que o imaginário popular transforma em lendas ou de lendas que passam a encarnar acontecimentos da vida cotidiana. Para mim, parece muito importante na existência americana aquela área em que a irrealidade real, como diria Unamuno, do lendário se confunde com a própria vida dos personagens"[5].
Recordo de quando começamos a ler Homens de milho e o susto geral foi se alastrando de acordo com o avançar de páginas. O livro só ficava cada vez mais e mais confuso, como se impedisse que nós tivéssemos acesso ao real significado ou a real história que ele estava contando. Agora, após finalizar essa releitura e refletir um bocado sobre, percebo que esse é um livro de perdição. Claro, não falo aqui para instaurar um manual de instruções de leitura, mas como alguém que sente a necessidade de fazer com que mais pessoas leiam essa obra tão imprescindível da nossa literatura. Homens de milho pede que a gente se perca entre suas páginas lendárias, míticas. Não há como entender tudo de cara de uma história até então desconhecida. O desejo maior que nos faz persistir, é sentir como o trabalho da renovação da linguagem atua para domar o indomável da nossa realidade maravilhosa. Não foi tarefa fácil, Astúrias levou mais de 20 anos para concluir, ou seja, ler esse monumento também não poderia ser simples.
Mas existem cenas tão lindas e descrições que sei que vou carregar para sempre em minha memória, que qualquer dificuldade inicial simplesmente deixa de existir porque o desfrute é definitivamente maior.
Para finalizar, deixo uma fala de Astúrias sobre as suas obras:
"Sempre escrevi e escrevo para defender os interesses e direitos do povo da Guatemala. Desde o momento em que comecei, como poeta e como jornalista, sempre pensei que estava falando por aqueles que estavam em silêncio lá. Ele falou por milhões de indígenas que não fazem suas vozes serem ouvidas. Ele falou para interpretá-los em suas ambições, em suas buscas, em suas alegrias. E por isso, nunca escrevi apenas para minha própria satisfação, para meu egoísmo, para me tornar autoconsciente do que sou, do que tenho... Não escrevo por escrever, faço-o para cumprir uma função, para cumprir um dever e para levar a ambientes mais amplos e universais todas as ambições, aspirações e sofrimentos do povo guatemalteco”[6]
- Veja a live que fiz com o tradutor de Homens de milho: https://www.youtube.com/live/VOwr0ZU31LM?si=-x8f4rc-wG--8x5_
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[1] Citação retirada do texto de posfácio da pesquisadora Adriana Junqueira Arantes, presente na edição em português de Homens de milho. No texto, a pesquisadora toca em um ponto interessante de análise de homens de milho em relação a nossa interpretação de problema ambientais atuais. Uma conexão interessante e que recomendo fortemente a leitura.
[2] Idem.
[3] Cárdenas, E. G. (2017). El Realismo Mágico y Lo Real Maravilloso En" Hombres de Maíz" De Miguel Ángel Asturias. Dialéctica, (1).
[4] Idem.
[5] Citado por Claudé Couffon: (1963): "Miguel Ángel Asturias y El Realismo Mágico". Asunción, Paraguay: ALCOR. Marzo-Junio.
[6] Cárdenas, E. G. (2017). El Realismo Mágico Y Lo Real Maravilloso En" Hombres De Maíz" De Miguel Ángel Asturias. Dialéctica, (1).
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