Cantam os pássaros, expiam os medos e resta a incerteza
A argentina Samanta Schweblin trouxe a perturbação que impregna no ordinário. O que há de mais fantástico que isso?
Minha base de conhecimento em literatura fantástica vem quase que totalmente de argentinos: Silvina Ocampo, Bioy Casares, Cortázar, Borges... Com eles, entendi que o fantástico nunca foi só sobre fantasmas ou lobisomens.
Por que começar assim? Porque, em abril, tive o prazer de ler o incrível Pássaros na boca e sete casas vazias, da escritora argentina Samanta Schweblin. E não se trata de uma reinvenção do gênero — e eu nem buscava por isso —, mas de uma obra que oferece uma perspectiva única e perturbadora sobre medos cotidianos, especialmente na experiência feminina (embora não exclusivamente).
Ou melhor, parando para pensar: se você for apegado a nomenclaturas como eu, "modular" seria mais preciso que "reinventar". É um fenômeno comum entre autores contemporâneos: desafiam as regras do gênero, desconstroem cânones e criam obras genuínas a partir deles. Daí o tom de ambiguidade.
A chave para ler esses contos? Lembrar que partem do ordinário para corromper a normalidade. O horror está no que não é dito.
Mas, cá entre nós, vou me agarrar a outro termo para falar dos contos que mais me marcaram: o neofantástico, como define Jaime Alazraki, substitui o sobrenatural explícito por quebras na lógica. Em "Papai Noel dorme em casa", um narrador infantil confunde um amante com Papai Noel. A realidade é questionada sem monstros — só pela perspectiva distorcida. A violência em Schweblin é grotesca e crítica. Em "A mala pesada de Benavides", um cadáver de mulher vira obra de arte, satirizando a obsessão pelo choque. O absurdo está no fato de uma mulher assassinada ter se tornado arte ou que os corpos de todas as outras mulheres assassinadas passem despercebidos?
A indeterminação é outra sustentação. Em "O cavador", um poço sem explicação deixa o leitor à deriva. A falta de nexos causa mais inquietação que um fantasma — porque reflete nossa própria incapacidade de entender tudo. Até a ciência vira matéria fantástica: em "Conservas", um médico reverte uma gravidez e "conserva" o embrião num frasco, ilustrando perfeitamente o absurdo burocrático sobre o corpo feminino. Já em "Meu irmão Walter", a depressão de um homem traz sorte à família. A inversão é genial: e se o sofrimento alheio for nosso talismã?
"Ah, Eliz, mas qual é o teu ponto?" Para mim, Pássaros na boca deixa claro que o fantástico não é escapismo. Ele desestabiliza nossa confiança no real. Ao misturar o banal com o inexplicável, Schweblin nos força a confrontar o que preferiríamos ignorar. Ignorar para fugir do desconforto. E por que certos contos nos inquietam, mesmo sem monstros ou revelações?
A maioria não tem finais fechados; os personagens são incompletos; suas ações desafiam normas sociais e morais. Nós, leitores, precisamos preencher as lacunas — e é aí que o sinistro aparece. O familiar vira incerto e nos ameaça.
O sinistro está ligado ao inconsciente. Sentimos angústia quando algo íntimo — desejos reprimidos, medos infantis — retorna disfarçado, mas reconhecível. Repetições, duplos, silêncios e isolamentos não são efeitos gratuitos em Schweblin: são estratégias para desestabilizar nossa percepção do real.
Em "Mulheres desesperadas", há uma atmosfera de indiferença, como se as emoções tivessem sido apagadas. O sinistro não está num susto, mas na passividade das personagens, que parecem ter rompido com o mundo porque o mundo as abandonou primeiro. Já em "Pássaros na boca", Schweblin vai além: uma adolescente passa a comer pássaros vivos, enquanto seus pais oscilam entre espanto e impotência. A inversão do natural — a filha que rejeita comida humana — serve como metáfora para rupturas familiares e para os limites entre cuidado, repulsa e aceitação.
Em vez de mundos distantes, Schweblin escolhe o cotidiano. O efeito é quase físico: lemos com sensação de alerta. Algo não está certo. As histórias nos obrigam a encarar a fragilidade da razão, da normalidade, da linguagem — tudo que usamos para dar sentido ao mundo.
Ao despertar incerteza, ela nos aproxima de quem somos por dentro: um emaranhado de impulsos, medos e contradições.
Numa época em que tudo precisa fazer sentido, e a subjetividade parece perder espaço, Samanta Schweblin nos lembra que o incompreensível também é parte da vida — e que há beleza, até consolo, em aceitar essa incerteza.
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A Samanta é incrível. "A mala pesada de Benavides" é um dos meus contos da vida.
muito muito bom!