#1 - "Este livro não presta, tem de ser destruído"
De nada adiantou Gabo avisar. O interesse comercial falou mais alto que o bom senso e "Em agosto nos vemos" terminou sendo publicado.
“Num ato de traição, decidimos colocar o prazer de seus leitores acima de todas as outras considerações. Se os leitores celebrarem o livro, é possível que Gabo nos perdoe. É nisso que confiamos”.
Opa, aqui vai um spoiler: ele não perdoará…
Os filhos de Gabriel García Márquez - Rodrigo e Gonzalo García Barcha - escreveram um rápido prefácio à edição de Em agosto nos vemos como uma forma de disclaimer para alertar os leitores de que as páginas seguintes podem não ser tão boas quanto estamos acostumados quando o assunto é a escrita de Gabriel García Márquez.
Faço parte de um grupo nada seleto de leitores apaixonados pelo escritor colombiano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. Não é difícil cair de amores pela obra de quem sempre falou sobre a vida e o amor, dois temas aparentemente corriqueiros, de uma maneira tão íntima e universal que consegue nos maravilhar e horrorizar em medidas perfeitamente equilibradas.
Todo ano tento ler pelo menos um livro dele. É uma forma de reencontro comigo mesma, com a leitora que fui e com a que quero me tornar. Esse ano, tive a não tão feliz ideia de ler Em agosto nos vemos.
Partindo da ideia de deslocamento, movimento e mudança, Em agosto nos vemos gira em torno da viagem como força motriz na vida da protagonista Ana Magdalena Bach. Todo mês de agosto ela parte em viagem para uma pequena ilha caribenha para colocar gladíolos no túmulo da mãe. Para não fazer tanto caso sempre se hospeda no mesmo hotel, compra as flores no mesmo lugar, pega o mesmo taxi, come a mesma comida no mesmo bar e dias depois volta para sua vida conjugal.
Em certo ano, quando tudo estava ocorrendo da mesma maneira e ela jantava no mesmo bar de sempre, um homem a convida para beber. Aceita, bebe e termina levando ele para o seu quarto.
Como você pode imaginar, a vida e as viagens de Ana Magdalena jamais serão as mesmas.
A partir de então, cada mês de agosto é precedido de uma espera ansiosa. O ritual de colocar flores para a mãe fica em segundo plano e é rapidamente realizado, porque o foco passa a ser a conquista de um novo amante a cada ida.
Apesar de aparentemente simples, vindo do Gabo, poderíamos esperar um retrato deslumbrante dos medos e desejos de uma mulher, descrições de espaços e sensações precisas, a paixão afogueada e o reencontro do amor por si mesma.
Na teoria e na expectativa poderia ter sido assim. Mas o que temos em mãos é um projeto raso, carente de finalização e lapidação que o estado de saúde do escritor não o permitiu realizar.
É triste, não há como negar, que seus últimos anos de vida levaram sua memória. “A memória é, ao mesmo tempo, minha matéria-prima e minha ferramenta. Sem ela, não existe nada”, disse.
A cada página que avançava ficava um pouco mais incrédula pela decisão de publicação. O livro claramente carece de lacunas o preenchendo, precisa de vigor. Não há, em nenhum momento, nenhum tipo de embate ou trepidação sobre o rumo da história. Desde o primeiro capítulo já sabemos o que acontecerá e simplesmente acontece. Não há o rancor, a dúvida, a espera ansiosa por reviravoltas ou personagens cativantes que já estamos acostumados a ter na prosa do escritor colombiano.
“Mas, Eliz, você não deseja ser surpreendida? Ler algo diferente de um escritor que você já gosta e conhece?” Sempre! Mas aqui o caso é diferente, não existe surpresa. Existe, sim, um texto frio e linear.
“No entanto, ela precisou de vários dias para tomar consciência de que as mudanças não eram no mundo, e sim nela própria, que sempre andou pela vida sem enxergá-la e só naquele ano, ao regressar da ilha, começou a vê-la com olhos de aprendiz”.
Refletindo, percebo que o meu desencanto começou quando tive a sensação de que minha subjetividade não teve espaço para existir durante a leitura. Tudo é exaustivamente explicado, repetido, reiterado. Tudo o que há para absorver do livro já está ali, na primeira camada. A personagem e suas motivações são planas, já estão entregues. Não é preciso julgar ou ponderar sobre nada porque logo adiante tudo será inadvertidamente explicado.
Sorridentes, os filhos saíram numa espécie de tour para promover o livro, reiterando que sabiam que isso era um ato de traição com a memória e os desejos do pai. Então, por que publicaram? Não seria suficiente toda a obra monumental que ele já nos legou? Cada texto que teve o seu cuidado e trato que já nos emocionaram e ainda emocionarão por muitos e muitos anos?
No final das contas, sou apenas uma leitora que não sabe de quase nada. Sei apenas da minha experiência e, infelizmente, ela foi decepcionante.
Não perdoará mesmo.
Filhos...
Os mesmos que venderam os direitos de Cem Anos pra uma adaptação audiovisual, outra coisa que o Gabo afirmou várias vezes que não queria. Triste.